terça-feira, 7 de julho de 2020

A Era de Ouro da Trilha Sonora

Desde que escrevi, há mais de 15 anos, o primeiro artigo sobre trilha sonora (e que depois veio a constituir um dos capítulos da minha dissertação de mestrado e meu livro sobre o assunto), sempre procurei acompanhar as tendências e rumos que o cinema hollywoodiano (o único que nos chega fora dos grandes centros, infelizmente) tem tomado nesta intrincada relação som-imagem.

Um colega costumava dizer que um filme é "100% imagem e 100% som", o que, antes de ser uma contradição matemática, é uma verdade cinematográfica. Mesmo filmes que não possuem trilha sonora como Um Dia de Cão (Dog Day Afternoon), de Sidney Lumet, são contundentes no quesito som, e a ausência de música acaba por enfatizar aspectos visuais; é um fator dramático preponderante.

Muito se tem discutido a respeito da necessidade e da própria razão de existência da música no cinema, mas uma coisa é certa: assistir Star Wars sem música é uma das experiências mais frustrantes da vida de um fã. Acredito que, enquanto na cinematografia dramática a trilha sonora é uma opção, na cinematografia épica é uma obrigação.

Mas, justamente lembrando destes gloriosos tempos das contundentes trilhas dos anos 70-80, hoje assistindo aos épicos modernos, me pergunto: para onde foram as aquelas boas trilhas sonoras?

Antes de mais nada: o que significa, neste contexto, uma 'boa trilha sonora'? Bem, levando-se em conta a relatividade da questão, estabeleço os parâmetros que me guiam: eles remontam à própria noção de música épica, da qual podemos considerar Ludwig van Beethoven seu primeiro arauto. Na passagem da tradição clássica para o romantismo, a música deixa de se bastar em sua própria forma e parte para explorar descrições de estados de espírito de contextos externos à própria música. Isso caracteriza de maneira geral a música de Beethoven, como pertencente a um universo emotivo mais referencial, imprimindo caráter próprio à cada elemento discursivo em sua arte: como se musicasse sentimentos. Isso se torna evidente na Sonata ao Luar ou na Sinfonia Pastoral (inclusive revestida de imagens pelo desenho ontológico de Disney), e também na Nona Sinfonia, através de uma narrativa epopéica que parte da angústia sombria do ré menor do 1o. movimento para a expressão mais universal de júbilo em música, o ré maior do tema da Ode à Alegria do 4o. movimento. Isso sem falar da profundidade do Adagio e do contagiante Scherzo, que são etapas que nos preparam para o finale. Essa ideia de "preparar o final" já existia como função harmônica, no sentido de preparar um acorde para resolução, mas não um conceito usado como recurso da estrutura narrativa. E foi isso que Beethoven fez. Daí em diante, todo o mundo se tornou romântico, até mesmo, quem diria, Brahms (vide os finais, grandiosos, de sua Primeira, Segunda, e Quarta Sinfonias). 

Mas talvez o compositor que tenha levado essa narrativa épica à sua mais alta sofisticação romântica foi Richard Wagner. O Drama Musical é a cinematografia do séc.XIX, com sua narrativa musical e dramática ininterrupta, que nos leva a um final sempre catártico. Poucas vezes a história da música arrebatou tanta emoção como na última cena do Crepúsculo dos Deuses ou na morte de amor de Tristão e Isolda. São obras que preparam a narrativa para a conclusão épica, utilizando temas que representam personalidades ou estados específicos da história narrada. Uma técnica desenvolvida primeiramente com Hector Berlioz através da ideia-fixa (caso da Sinfonia Fantástica, talvez a obra mais representativa do romantismo sinfônico), e depois aproveitada por Wagner como leitmotif, ou motivo condutor. Até hoje as novelas utilizam essa técnica, associando música a personagens.
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A questão é que quando associamos um tema musical específico, bem delineado, bem definido, a um estado de espírito, acrescentamos um signo-sinal, uma marca registrada, uma identificação com a história e o caráter de sua narrativa. 

Assim, quando o cinema se tornou sonoro, os compositores vieram justamente dessa tradição sinfônica, cujos ápices podem ser resumidos nas figuras de Richard Strauss e Gustav Mahler, em função de suas obras grandiloquentes e épicas, ao ponto de Debussy ter se referido ao Heldenleben de Strauss como 'um livro de imagens, cinematografia'. 

Pertinente, portanto, entender porque Strauss (o Richard, neste caso) foi usado na apresentação do clássico da ficção científica 2001: uma odisséia no espaço (1968) de Kubrick (o Johann também deu sua contribuição): ilustrou com maestria o ideal épico filosófico que o filme evoca, criando identidade ímpar. Depois desse filme, o Zarathustra nunca mais foi o mesmo: todas as artes das capas de gravações dessa obra fazem referência ao espaço sideral, coisa que não estava no horizonte nietzscheano que inspirou Strauss. 


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Mas não só o Zarathustra, não só 2001: a música sinfônica épica pós-wagneriana (inclusive) influenciou praticamente todas as trilhas sonoras de ficção científica modernas, vide as harmonias e ritmos usados na merecidamente célebre suíte de Gustav Holst, Os Planetas. Ou ainda nas digressões sinfônicas de Mahler, verdadeiras epopéias orquestrais (particularmente sua Segunda Sinfonia, que segue o modelo de narrativa beethoviano), e também na Morte e transfiguração de Strauss. 

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A eloquencia no discurso musical, a mesma que torna a música grandiosa, empresta este caráter a uma imagem a ele associada. Quanto mais eloquente o tema, mais essa simbiose se torna significativa, e a resultante emotiva, perene. E é nesse quesito que as trilhas modernas falham. Não são eloquentes e criam identidade muito frágil com o espírito da narrativa. São apenas panos de fundo que ajudam a climatizar a imagem, mas quase não interferem nela. Sustentam estados de maneira quase imperceptível, não atuam de forma concomitante, mas subordinada. Isso é ruim? Não necessariamente, sempre depende de intenções poéticas do conjunto, mas se a história da trilha sonora nos ensinou alguma coisa é: quão mais forte é a emoção com o reforço de dois estímulos sensíveis, música e imagem!

Por esse motivo, do início do cinema sonoro até este período, a música para cinema foi feita por compositores clássicos, literalmente. Não apenas por sua formação, mas também pelo próprio espírito estético envolvido. A necessidade de uma identificação simbiótica som-imagem como reforço de um potencial emotivo: a fábrica de sonhos. Dois grandes exemplos: Erich Korngold e Miklos Rozsa.

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O austríaco Korngold foi um gênio precoce, já chegando aos produtores de Hollywood com credenciais altamente referendadas, incluindo recomendações dos próprios Strauss e Mahler. Imigrando como refugiado de guerra, encontrou no novo mundo uma cultura basicamente visual, permeada pela indústria foto e cinematográfica em franca ascensão e, no quesito musical, dividida entre o culto ao sinfonismo clássico e romântico, ou a vanguarda da influência do jazz e da canção popular. Resumo: pouco espaço para qualquer alusão aos seus ideais pós românticos, razão pela qual seu destino natural foi a música para cinema. Korngold fez verdadeiros poemas sinfônicos de suas trilhas, como atestam os temas cativantes de seus melhores trabalhos, não obstante sua produção também abranger óperas, música de câmara e sinfônica.
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Rozsa, de origem magiar e formado pelo Conservatório de Leipzig, não era apenas um compositor proeminente, mas também um musicólogo largamente interessado em arqueologia musical, pesquisando música histórica e especialista na reconstituição das sonoridades da antiguidade. Mas seu principal atributo, em termos de visão estética na composição musical, era seu senso de grandeza: o épico na música, que levou, por exemplo, à glória da trilha de Ben-Hur (1959) de Wyler. Uma das mais contundentes trilhas sonoras já escritas, modelo para gerações posteriores.

Além deles, compositores consagrados no cenário erudito também receberam, ocasionalmente, encomendas para trilhas sonoras, como Prokofiev, Shostakovich, Vaughan Williams, Milhaud e Villa-Lobos. A profissão de músico incorporou mais uma especialidade: começa a geração dos compositores específicos para cinema. Assim, temos que a trilhas dos anos 40-50 foram realmente marcadas pelo sinfonismo pós-romântico, a notar pelas belas construções de Dmitri Tiomkin, Max Steiner e Alfred Newmann. Todos em certa medida korngoldianos, mas que em certos momentos chegavam a sobressair em relação à própria narrativa dramática: mais música que história. 

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As trilhas dos 60 e 70's seguiram exatamente essa razão, mas buscando seu perfeito equilíbrio: simbiose entre música e imagem, tirando uma resultante emotiva ímpar. Até mesmo a inclusão da música popular como tema de filmes não apagou a necessidade de trilhas orquestrais, mantendo as atmosferas sensíveis mais proeminentes à cargo da música sinfônica. Todos os gêneros compartilharam dessa premissa, do drama à comédia: quem não se lembra da trágica Love Story e sua trilha concertante assinada por Francis Lai, a fábula felliniana Amacord, do eterno Nino Rota, ou a irresistível Pantera-Cor-de-rosa de Henry Mancini? Mas os anos 60-70 também continuaram a era de ouro dos épicos e suas trilhas: Doutor Jivago e Lawrence da Arábia, do incrível Maurice Jarre, pai de Jean-Michel, mestre dos sintetizadores dos anos 80. 
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Isso sem falar nos westerns e nos suspenses: o que seria de Hitchcock sem Bernard Herrmann, o que seria de Sergio Leone sem Enio Morricone?

A partir dos 70-80, o grande gênero que sustentará as trilhas sinfônicas mais empolgantes será a ficção científica: de Blade RunnerStar Trek a Star Wars, ninguém pode dizer que as trilhas de John Williams, Jerry Goldsmith, Vangelis ou James Horner não tenham ajudado a transformar cada um desses filmes em verdadeiros cults. A trilha de Horner para Star Trek II (1982) é digna de menção, pela originalidade e eloquência. Poucas vezes no cinema o clima foi tão bem construído pela música e se harmonizou tanto com o espírito da narrativa.

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Mesmo quando as músicas apresentam claras citações temáticas e harmônicas com os grandes mestres do passado, ainda assim tal aspecto não lhes tirava o mérito, e muito menos a grandiloqüência. Lembro-me perfeitamente do impacto que a partitura de E.T. - O Extraterrestre provocou na sua platéia: as pessoas saiam do cinema cantarolando o tema, além, é claro, da cara vermelha e inchada de tanto chorar. Sem dúvida, a música deste filmes é uma verdadeira marca em nossas vidas, uma cereja do bolo. Essa era dourada conseguiu adentrar os anos 90 de forma bem menos incisiva; timidamente, diria. A fórmula mostrava sinais de desgaste, as músicas não conseguiam mais acompanhar a eloquência das imagens; a saturação parecia inevitável.

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Com efeito, a partir de 2000, com raríssimas exceções, nunca mais consegui ir ao cinema e ter a mesma sensação - aquela  em que música é tão sensível que vibramos ou choramos junto com os personagens (como no Cinema Paradiso, com trilha magistral de Enio Morricone). Mas de forma geral, não precisamos remontar aos mestres da era de ouro para perceber certa queda na relação som/imagem: basta ver a filmografia contemporânea e constatar que a trilha sonora de um Avatar, de um Titanic (sua partitura orquestral, não sua canção-tema), e mesmo de TroiaBatman ou até o Lord of the Rings são partituras que não estão na mesma razão de qualidade música-imagem que estavam os épicos dos 50 até os 80. Aliás, a inspiração para música de cinema está tão minguada que Troia se valeu nada menos que um tema de Shostakovich como leitmotiv. A pergunta que me faço: É uma tendência de hollywood optar por trilhas sonoras que fiquem aquém da qualidade da imagem ou é uma real crise de criatividade na música mundial?

Fica a reflexão.

Abraços



sexta-feira, 1 de março de 2019

André Previn: a elegância de ser pop entre os clássicos

Acordei com a triste notícia da morte do maestro André Previn, personagem a quem devo grande parte de minha formação musical ao acompanhar seu programa semanal de música clássica, não me lembro se era Meet André Previn ou André Previn's Music Night, mas que aqui no Brasil foi exibido pela TV Cultura nos anos 80.
Homem de incrível versatilidade, transitava sem nenhum conflito pelos mais diferentes gêneros musicais, indo do clássico acadêmico ao popular refinado, passando com louvor pelo jazz e pela trilha sonora cinematográfica sem nunca perder o requinte de interpretações, arranjos e composições de primeiríssima qualidade. Um músico completo, como poucos no século XX.
Dotado de carisma incomum, apesar de seus ridículos óculos de aro grosso e seu cabelo de tartaruga, tinha uma verve dramática que o permitia ser, além de tudo, um ator competente, tendo participado de sketches cômicas para a televisão inglesa.
Judeu, com nome francês, era na verdade alemão, nascido em Berlim, e cedo imigrou com a família para os Estados Unidos em função da perseguição nazista, onde estudou e iniciou sua carreira como arranjador em Hollywood. De certa forma, esta origem e formação, múltipla e eclética, nos dá razão para seu talento tão diversificado.
Mesmo com toda a agenda atribulada do show business, Previn foi ainda diretor musical das Sinfônicas de Houston, Londres, Pittsburgh, Los Angeles e da Royal Symphony Orchestra.
Apesar de não conhecer bem seu lado popular, e nem suas incursões pelo jazz, presto minha singela homenagem indicando alguns de seus registros como maestro, de quem tenho o mais alto apreço.

Haydn: Symphonies 94 'Surprise', 96 'Miracle' & 104 'London'

Este é um disco que gosto muito, e que demonstra como Previn era capaz de conduzir clássicos com a mesma competência dos românticos e modernos. Estas são algumas das mais célebres e conhecidas sinfonias de Haydn, um compositor de pródiga invenção temática, que nestas obras explora a maturidade do desenvolvimento da forma-sonata. Previn reforça os contornos da arquitetura formal sem nunca trair a essência do estilo, o que mostra seu profundo respeito pelas formas clássicas.
Um disco surpreendente, tanto pela qualidade da interpretação, quanto pela honestidade de propósitos.


Messiaen: Turangalîla-Symphonie; Poulenc: Concerto Champêtre, Organ Concerto.

Na música moderna e contemporânea Previn foi um dos grande arautos. Ainda que tivesse preferência para obras consagradas como Carmina Burana, Rhapsody in Blue ou a obra orquestral de Rachmaninov, os clássicos do Século XX em suas mãos ganhavam não só notoriedade, mas popularidade e um intérprete refinado. No caso de Messiaen, pela complexidade da partitura, o desafio de uma leitura objetiva e clara é patente, e poucas vezes tive chance de ouvir esta obra de forma tão brilhante. Previn ainda não desaponta nos concertos de Poulenc, música bem mais digestiva que a de Messiaen, mas que ganha ares parnasianos e sobrevoa com facilidade o conflito entre o arcaísmo e a modernidade destas obras.

Korngold: The Sea Hawk, Captian Blood, The Prince & the Pauper, Elizabeth & Essex

Aqui Previn samba no que melhor fazia, trilha sonora cinematográfica. Neste gênero, foi maestro, arranjador e compositor, tendo ganhado Oscars e Grammys por tais trabalhos. Este disco mesmo foi laureado com o Grammy de melhor gravação na categoria crossover (rótulo questionável) em 2003. Korngold foi o pai de todos os compositores de música para cinema, sendo inspiração constante para mestres como John Williams e Jerry Goldsmith. De formação solidamente clássica, Korngold foi elogiado por Mahler e Richard Strauss na infância, e também acabou migrando para os EUA na ascenção do nazismo. As evidentes semelhanças tornam Previn um intérprete de autenticidade ímpar na obra de Korngold. Uma pérola.


Prokofiev: Romeo and Juliet

O ballet mais famoso de Prokofiev ganha aqui uma leitura épica, e, bem ao estilo de Previn, cinematográfica. Neste caso, faz uma grande diferença, aliando um romantismo tardio com uma verve dramática característica do século XX. É impressionante o controle que Previn faz dos tons e nuances, por vezes os mais díspares, dentro de uma mesma obra. Esta é, a despeito de outra gravações marcantes (Ozawa, por exemplo), a minha preferida.

Previn foi um maestro extremamente elegante, nunca foi exageradamente festejado e nem se deixou afetar em seu trabalho pela fama, e sempre tratou sua carreira com o maior respeito possível à entidade que lhe deu razão de vida: a música.

domingo, 6 de maio de 2018

Para ouvir música com alguma qualidade hoje em dia: FLAC vs. MP3


Caro Leitor:

Este post não é uma tentativa de traçar um perfil desolador e inconformado do atual panorama da produção musical no mundo. Sim, a música está passando por uma de suas fases mais sombrias em termos de qualidade de criação, mas não há muito o que reclamar, pois é assim que funciona o potencial psíquico do mundo: através de ciclos. O nosso, agora, é o fundo do poço.

Mas, como mencionei, não se trata desta qualidade que quero abordar, e sim uma outra, concomitante, e que se justifica pelo fato de que, uma das saídas para a escassez de boa música feita hoje, é justamente revisitar o passado, que, dependendo do caso, nem lhe cabe este adjetivo: são obras atemporais. Grande parte da produção da chamada música clássica cabe neste invólucro.
E exatamente neste quesito se impõe nos dias atuais o desafio que outrora era apenas uma questão de espaço: como ouvir grandes obras musicais e apreciá-las devidamente num dispositivo móvel que comprime o áudio até ficar pior que uma fita k-7?

Sou de um tempo em que se comprava LPs, os saudosos vinis, que, se tinham o inconveniente de riscar e apresentar chiados, tinham por outro lado uma qualidade de resposta de frequência extraordinária. Claro, isso não era objeto de questionamento uma vez que era a única mídia disponível, e portanto não havia a possibilidade de comparação. Foi aí que resolvi comprar minha primeira fita k-7, na tentativa de ouvir música clássica sem os chiados do disco. Realmente, a fita eliminava este problema, mas criava outro: a sensação de que se ouvia a música com um constante abafador de piano. Claro, a resposta de uma fita em frequencia, na velocidade em que era gravada, não podia competir com um LP bem gravado.

Adendo: todas estas comparações só eram possíveis porque na época não existiam praticamente aparelhos de som portáteis, a não ser radinhos de pilha, vitrolas infantis e toca-fitas bastante toscos, que nem entravam no mérito da discussão. Os aparelhos de som eram modulares ou, no máximo, aqueles famosos "3 em 1", que juntavam o rádio receiver, toca-discos e toca-fitas em um único aparelho. Os melhores equipamentos, entretanto, tinham que ser montados separadamente, inclusive caixas de som, e era uma preocupação vívida escolher alguma que tivesse uma boa qualidade de resposta sonora. E, mesmo os 3 em 1 eram muito melhores que todos os portáteis que vieram em seguida. Um jocoso anúncio publicitário da época (talvez final de 70) mostra um pouco a parafernália que era montar um aparelho de som:

Reparem nas caixas de som: hoje seriam consideradas profissionais,
dada a qualidade da construção e da resposta sonora.

Mas tudo isso tinha um propósito: o prazer de ouvir boa música num bom aparelho. Aliás, quanto melhor o aparelho, melhor o prazer. Era uma época que as pessoas pareciam realmente apreciar a música por suas qualidades intrínsecas, pois só isso justificaria a exigência de tal investimento em nível caseiro.

E hoje? bem, este tipo de aparelho ficou relegado à sonorização profissional ou a um público seleto, dado o alto investimento dos equipamentos, por vezes proibitivo, que faria um desavisado achar que não passa de algum excêntrico tentando ostentar luxo para as visitas - o que até pode ser verdade em alguns casos, mas que, de qualquer forma, pelo menos denuncia uma exigência por reprodução sonora de qualidade. Para o restante dos mortais, que apenas querem dizer à indústria eletrônica "mais qualidade, por favor!", nos empurram dispositivos móveis e fontes canhestras como o Spotify. Os vendedores das casas comerciais não-especializadas não conhecem os equipamentos, não tem nenhum tipo de treinamento sobre as diferenças entre os modelos e as codificações digitais disponíveis, limitando-se a repetir o que pode ser lido na embalagem. É o reino dos aparelhos portáteis, compatível com a profundidade do conteúdo da música ouvida hoje. Mas este também não chega a ser exatamente o problema, pois a portabilidade pode ser útil em muitos casos, e sim a tal qualidade - e é aí que quero chegar - da compressão do áudio.

Os nativos digitais me entenderão facilmente: as estantes empoeiradas de LPs dos seus pais soam como relíquias sagradas e são hoje quase que objetos intocáveis. O CD, mais próximo da realidade, simplesmente acabou, por conta da divulgação da música pela internet, e a sobra foi a música comprimida.
Mas o que é compressão? Agora me dirijo aos não-nativos digitais, ou aos que tem alguma dificuldade (como eu) de entender um monte de siglas, códigos e valores numéricos que permeiam qualquer conversa sobre este assunto.

Vou falar de forma bem simples: Compressão é colocar dentro de um espaço pequeno algo de um tamanho grande, que não caberia lá normalmente. Em certos casos, é possível dobrar este algo grande até que ele caiba no espaço pequeno, mas isso não é ainda compressão, e sim compactação, pois ele continua do mesmo tamanho, apenas está guardado num lugar menor. Uma barraca de camping, por exemplo, ocupa muito espaço montada, então desmontamos e dobramos até ela caber numa pequena sacola. Mas ela continua sendo a mesma, como ocorre nos arquivos compactados tipo ZIP ou RAR. A compressão seria quando você quer colocar algo grande num espaço pequeno, mas ele não cabe lá nem dobrado. Então você tem que cortar este algo, tirar alguma parte dele para ele caber lá. Se você corta a barraca pela metade, depois desmonta e dobra, ela caberá numa sacola ainda menor. Mas será metade da barraca.

É assim que acontece nas mídias digitais: na fotografia, por exemplo, a imagem RAW é sem compressão, mas a imagem JPEG é uma compressão. Ela corta informação que normalmente não percebemos, e para postar no facebook não fará diferença. Mas, se quiser ampliar a imagem e colocar num quadro, verá que uma imagem comprimida apresentará falhas, em alguns casos, inaceitáveis, dependendo do grau de compressão. Por este motivo é que câmeras profissionais tem a opção de registrar em RAW, e as amadoras, na maioria, não.

Assim funciona também com o áudio: o CD utiliza um arquivo original desenvolvido pela Microsoft chamado LPCM (Linear pulse code modulation), que é decodificado como WAVE (a extensão é .WAV) no Windows ou como AIFF no Mac, normalmente gravado em 44100kHz, e pode ser considerado uma referência de áudio em termos de qualidade. Existem gravações feitas com maior quantidade de informação, como os Super Audio CD, mas são casos muito específicos, que nos remetem o excêntrico endinheirado mencionado acima. O resto do mundo utiliza ou este padrão (quando ouve um CD) ou o JPEG do som: o MP3.

O MP3 é o formato mais comum de compressão de áudio, porque reduz um arquivo original em 30, 20 ou mesmo 10% de seu tamanho. Em outras palavras: um arquivo Wave representa uma quantidade de informação que pode ser comparada pelo tempo em relação à memória ocupada: 10 mega por minuto. Uma música de 10 minutos ocupará 100 megabytes em Wave. Um disco inteiro de 70 minutos, 700 mega. O mesmo arquivo pode ser comprimido em MP3 com diferentes taxas, normalmente 128, 256 e 320 kbps (kilobytes por segundo), que é o valor da quantidade de informação lida por segundo. Quanto menor for este valor, maior será a compressão. Isso quer dizer que a mesma música em MP3 320kbps, ocupará 30 mega, em 256kbps, 20 mega, e em 128kbps, 10 mega (aproximadamente 1 mega por minuto, 10% do original).

Mas qual é a mágica? Não há mágica, a barraca foi cortada. Você está ouvindo 10% da informação original. Apenas o MP3 320kbps (a menor taxa de compressão possível no MP3) consegue enganar muito bem, e, se você ouve música no carro, numa caixa de computador, conjunto de som ou num aparelho portátil, estará muito bem servido. O problema é que na internet se encontram arquivos com taxas de bits bem menores (ou compressão maior), como 160 ou 192kbps, que, neste caso, realmente apresentam perdas audíveis. Ou ainda uma taxa de bits variável (VBR), que aumenta ou diminui a taxa de compressão de acordo com as necessidades da música, mas que é uma escolha feita por uma programação, incorrendo em distorção nos momentos mais sutis. Mas por que isso não é perceptível para muita gente? Bem, eu diria que é muito perceptível, mas atribuo a causa de uma possível não percepção a 3 fatores:

1) O equipamento de reprodução é ruim, como é o caso de dispositivos móveis, alto-falantes do computador ou aparelhos portáteis baratos, então ele só irá reproduzir frequências médias, e neste caso realmente não há como perceber grandes diferenças.
2) O tipo de música ouvida não requer esta percepção. Um eufemismo para dizer que há músicas de puro entretenimento, ou mesmo música ruim, e neste caso, não fará muita diferença.
3) O grau de envolvimento com a música: se música para alguém é mera diversão de fundo da balada, não existe a preocupação com a beleza da música em si, e, neste caso, também não irá fazer grande diferença.
Estes 3 casos denunciam uma particularidade: Há pouco ou nenhum prazer em ouvir música, o grau de envolvimento é superficial, e, portanto, acaba pela máxima do indefinido: tanto faz.

Estes aspectos desdobram-se em dois sintomáticos espelhos de nossa realidade: 1) realmente há uma lacuna na sensibilidade musical de nosso planeta (já que o MP3 reina na internet) e 2) como ficam aqueles que querem ouvir música com qualidade? Sobram poucas opções.

Este últimos são normalmente os chamados melômanos, que sentem exaltada atração por música, e que buscam sempre uma alternativa para vivenciar uma audição musical da forma mais completa possível. Escrevi um post há algum tempo na sublime ocasião em que tive o privilégio de ouvir uma apresentação ao vivo da OSESP da Oitava Sinfonia de Mahler, a "Sinfonia dos Mil". Neste post, comento que o prazer de ouvir música ao vivo, principalmente uma partitura com este grau de sofisticação sonora, é realmente insubstituível. Bem, na impossibilidade de se ouvir sempre ao vivo esta obra (e esta particularmente é bem rara de ser apresentada), sobra-nos a gravação. Mas de nada adianta se ela for em MP3. O que fazer, dado que não existem mais lojas de discos e as gravadoras insistem em não disponibilizar seu enorme acervo pela internet? O que fazer, levando-se em conta que um aparelho de som de qualidade hoje custa uma fortuna? (Acham que melômanos só podem ser ricos?)
Bem, vou tentar explicar como eu resolvi este problema, na esperança de que possa servir como experiência para quem está tentando algo parecido.



1)A primeira providência é ter um aparelho de som antigo, deste tipo descrito acima (modular, imagem abaixo), com caixas de som boas e grandes. Na verdade, basta o receiver (o rádio e amplificador, à esquerda) e as caixas, e, se possível, um aparelho que reproduza CD. Hoje não se fabricam mais tocadores de CD para consumo amador, apenas players portáteis (escassos) ou leitores de DVD que também lêem CD. Serve.

O que você tiver em CD, use este equipamento para tocar. Um receiver Polyvox, Gradiente ou Kenwood (por exemplo) amplificam o som com uma qualidade incrível. A vantagem deles é que se pode adquirir um destes equipamentos usados em bom estado por preços bem módicos, ou mesmo realizar uma revisão e manutenção em equipamentos antigos. Não é caro como comprar um receiver novo, e por vezes tem até melhor qualidade. Basta ligar a saída RCA do CD player na entrada auxiliar deste receiver e teremos um som como poucos tem.


2) Caso você tenha música que não seja em CD, atente-se para copiar de um amigo ou baixar pela internet apenas arquivos sem compressão. Existem centenas de arquivos de áudio disponíveis, e para citar todos é mais fácil indicar este link de Audio File Formats. Eu costumo usar preferencialmente a extensão FLAC (Free Lossless Audio Codec). Ela é uma espécie de ZIP de áudio, pois comprime o arquivo sem cortar nada dele, ou seja, apenas dobra a barraca de uma forma eficiente, mantendo seu tamanho original. Ouvir um FLAC equivale a ouvir o WAVE integral. Outra opção interessante é o arquivo M4A da Apple, mas essa só funciona para quem usa o iTunes. Segundo fontes, o M4A do iTunes utiliza um codec Apple Lossless, e em tese também mantém o arquivo integral (mas há certa controvérsia). Mas há também o M4A que utiliza outro codec em que há perda de informação, então só dá pra confiar se for feito no seu iTunes. O M4A obtido no iTunes Store é um arquivo comprimido com perda de informação, portanto desaconselho. Evite a Amazon ou qualquer outro fornecedor que utilize arquivos em MP3, pois são barracas cortadas. Aliás, acho até incrível que a Amazon e o iTunes tenham coragem de cobrar por uma música em MP3. É o fim da civilização!
De qualquer forma, são poucos os sites que disponibilizam música em FLAC ou outro formato lossless (sem compressão), mas há alguns, que eu costumo utilizar, como o Presto Classical, o Boxset.ru e Magical Journey. Uma vez obtido o arquivo em FLAC (ou similar, APE por exemplo), você pode convertê-lo em WAVE e queimar um CD, repetindo então o procedimento no.1.

3) Caso você queira ouvir a partir do reprodutor de sua preferência ou ouvir diretamente em FLAC com algum player do computador, sugiro o VLC, que executa arquivos FLAC, é bastante versátil e é gratuito. Outra opção é converter o FLAC em WAV, e aí um player comum como o iTunes e o WMP tocam normalmente, mas a desvantagem é que em WAV os arquivos ocupam o dobro do tamanho.
E aí há uma mumunha: como transferir o áudio do computador para o receiver? Os mestres da gambiarra diriam com o peito inflado: usar na saída de fone de ouvido um cabo P2 - RCA e ligar o RCA na entrada auxiliar. Funciona, mas é tosco, e acaba morrendo na praia naquela pretensa qualidade que se queria alcançar. O melhor é comprar uma interface, que seja placa de áudio externa, que faz esta conexão com maior propriedade e, logicamente, maior qualidade.

Há muitas e de diferentes preços, do amador ao profissional. Eu utilizo uma placa simples e barata, da Behringer (modelo UCA222 USB à direita), custou-me (na época) 29 dólares. Funciona muito bem, e consigo ouvir as minhas gravações em arquivo FLAC ou M4A como se estivessem sendo tocadas diretamente de um CD.

Eu explico meu procedimento melhor aqui neste vídeo.

Espero ter sido útil. Dúvidas? Deixe seu comentário!

texto: Filipe Salles

sábado, 31 de dezembro de 2016

Entre a Cruz e a Espada na música clássica: o Streaming e o prazer da audição.

Vivemos tempos difíceis. Sou de uma época (anos 80, 90) em que para ouvir música a título de informação, usávamos o rádio. E, para ouvir música para o prazer e deleite estéticos (que é uma outra razão, bem diferente), em geral tínhamos que comprar um disco. No máximo, em caso de falta de dinheiro ou acesso, usávamos um recurso oficialmente aceito de pirataria: gravar em fita K7. Era o download analógico. Mas todos tínhamos, consciente ou inconscientemente, a unanimidade de que uma apreciação adequada só era possível com um LP original. Pelo menos, no quesito música clássica.
Bem, o mundo mudou, tornou-se digital, a indústria fonográfica foi ao colapso e teve que se reinventar. Só que ela se reinventou nivelando seus padrões para uma maioria consumidora, que, no caso desta humanidade, é a de música pop (com todos os seus gêneros possíveis, do rock ao sertanejo). E, no desespero de fazer alguma coisa, acabaram optando, como principal acesso à música, por uma rádio onipresente, o streaming via internet. Spotify e coisas do gênero. Como única opção alternativa, a Amazon e o iTunes disponibilizam também assinaturas e/ou possibilidade de download mediante módicas quantias, para enfim baixar um arquivo digitalmente. Melhorou, mas para quem veio da minha geração, isso não faz sentido, porque seria pagar pela cópia em fita K7, já que o arquivo vem sem encarte e comprimido em MP3 ou M4A lossy.
Não, não! rádio na internet não é uma opção para a contemplação de uma obra clássica; e, para ouvidos exigentes, MP3 passa apenas como última alternativa, e ainda paliativa.
Para piorar: não existem mais lojas de discos, apenas via internet, e, especificamente no Brasil, tem, por algum motivo alheio ao meu entendimento, um setor destinado aos clássicos pífio, praticamente inexistente. A ignorância é tamanha que os administradores destas lojas, em qualquer esfera, classificam André Rieu como música clássica. O mercado livre oferece discos eventuais, mas a preços exorbitantes ou um repertório escasso de sebos.
E a Amazon? bem, 3 discos que tentei comprar por lá nunca chegaram. Os correios não sabem o que aconteceu, e dizem que a culpa é minha porque são encomendas sem registro. Fora o preço do frete, que chega a ser 10 vezes o preço do disco. Quando o dólar está valorizado, essa não é uma opção.
Mas então, o que nos resta, se a própria indústria considera música um mero entretenimento e nos priva de uma admiração mais profunda? Como artista, sei que muitos dependem de vendas para sobreviver, principalmente em nossos dias. Por isso cheguei a tentar, por certo período de tempo, fazer contato com gravadoras detentoras de direitos sobre fonogramas digitais para viabilizar comercializá-los legalmente, por download. Seria desencalhar o enorme acervo de gravações do século XX, um legado inestimável, e ainda conseguir algum lucro, pois são gravações hoje a fundo perdido. Nada. Ninguém respondeu, não deram a mínima atenção.
Há uma alternativa, que são os sites das próprias gravadoras ou terceirizadas (como a Presto Classical, que fez algum acordo de monopólio para distribuir as gravações de catálogo), que disponibilizam seus acervos em MP3 ou FLAC, via internet. É bom, e seria a melhor opção, mas como o preço é em dólar, a comparação com a mera possibilidade de baixar gratuitamente desestimula qualquer iniciativa: Sem contar a flutuação da moeda, é obrigatório o uso de cartão de crédito internacional (que já limita o público), e a maioria dos títulos não vem sequer com um encarte. Fora que alguns títulos não estão disponíveis (sei lá por quê) em certas regiões. Fui tentar comprar um simples Beethoven por Klemperer e não tinha a disponibilidade de download para minha região (Brasil).
Depois de tentar todas estas alternativas, e concluir que ouvir um bom disco clássico hoje é uma odisséia, não tenho outra alternativa senão dizer: graças à uma política empresarial limitada (para dizer o mínimo), os ouvintes de música clássica só tem, pelo menos no Brasil, a pirataria como meio de acesso digno e eficiente. Isso não é uma opinião, é uma constatação.
Gostaria que esse texto fosse levado em conta não como um protesto ou uma provocação, mas como uma análise, uma reflexão. Num mundo ávido por poder, concorrência desenfreada e lucros a qualquer custo, desconsiderando até a vida humana com algum valor, a contemplação de uma obra de arte musical fica relegada a exceções comerciais que não se justificam economicamente. Aliás, poucas pessoas hoje reconhecem o valor psíquico deste tipo de contemplação, e o resultado é que a música clássica é tratada com a mesma superficialidade que qualquer outro gênero, quando ela é justamente o gênero que permite uma apreciação artística profunda. Não é um gênero melhor, é uma forma de expressão específica, e precisa de meios específicos, que não se contentam com os meios hoje disponibilizados oficialmente. Ouvir música clássica não é um hobby, é uma necessidade do espírito.
Deixo, portanto, minha reflexão: seremos obrigados a cometer crimes de direito autoral para poder vivenciar minimamente uma experiência estética. É esse o mundo que queremos?
Abraços

sábado, 13 de fevereiro de 2016

Beethoven: tempestade e ímpeto





O nome "Beethoven", principalmente para nós ocidentais, representa um arquétipo poderoso, uma das personalidades mais conhecidas e admiradas das artes. Alguns o tem como sinônimo de música, outros ainda o consideram uma das mais vívidas personificações da figura do artista. À parte certos exageros romantizados, esses adjetivos não são sem razão: é natural que Beethoven desperte não apenas a admiração pela sua magnífica obra musical, mas também como exemplo de vida, uma vez que é bastante conhecida sua condição ímpar de compositor surdo. E, mais ainda, que nesta situação tenha alcançado fama, alguma fortuna e uma projeção sem precedentes na história da música, condição que até hoje subsiste, sendo portanto natural perguntarmo-nos: o que há por trás dessa intrigante personalidade?

Ludwig van Beethoven nasceu em Bonn, Alemanha, provavelmente a 16 de dezembro de 1770 (foi batizado no dia 17), filho de Maria Magdalena Keverich e Johann van Beethoven, de ascendência belga. Seu pai era um músico de talento bastante limitado, e ganhava a vida modestamente como cantor e professor de música, ensinando piano e violino. O casal teve ao todo 7 filhos, mas apenas 3 sobreviveram à infância; Ludwig foi o segundo, mas o primeiro a sobreviver, e portanto, foi tido como primogênito. Johann van Beethoven logo percebeu que seu filho tinha uma grande facilidade e talento para música, e na mais tenra infância já o iniciou no estudo do piano e do violino, sendo ele próprio seu professor.



Consta que o menino várias vezes chorava em frente ao piano. Cartas posteriores, de Beethoven já adulto, revelam que seu pai tinha um temperamento áspero, por vezes até violento, e exigia que o menino estudasse até o limite das forças físicas, para poder exibi-lo como criança prodígio (a esta época, a fama de Mozart como criança prodígio levou muitos pais a tentarem ganhar algum dinheiro com o talento dos filhos, ainda que forçadamente). Ao final da vida, o pai de Beethoven entregou-se à bebida e passou a receber pensão como inválido, tendo Beethoven a guarda de seus irmãos menores.

Já as lembranças de sua mãe são ternas e consoladoras: um comportamento amável, bondoso e acolhedor: quando de sua morte em 1787, retornou de sua viagem em que tinha ido estudar em Viena, provavelmente com Mozart, ao passo que a morte de seu pai, em 1792, não é nem sequer mencionada em seu diário.

Durante sua juventude, seu talento foi reconhecido e profetizado por vários compositores de renome e professores, incluindo Haydn e Mozart. Sua brilhante técnica pianística era inovadora e sua capacidade de improvisação extraordinária; foi admirado muito mais como virtuose do que como compositor. Desde os 11 anos já falavam dele nesses termos: "Tornar-se-ia seguramente um segundo Mozart, se continuar como começou", de seu professor Christian Neefe, ou ainda, quando foi estudar com Haydn em Viena, em 1792, e um amigo de infância lhe escreveu: "Trabalhe assiduamente e você receberá o espírito de Mozart das mãos de Haydn". E, o próprio Haydn, o mais festejado compositor de seu tempo, que chegou a escrever, após dar-lhe algumas aulas: "Ele ocupará no tempo devido a posição de um dos maiores compositores da Europa. Hei de orgulhar-me de chamar-me seu professor."

Em Viena, a capital da música, a efervescência cultural da era iluminista da pós-revolução francesa era um cenário propício ao desenvolvimento das artes. A aristocracia e a nobreza eram grandes patrocinadoras, cultivando principalmente as audições musicais públicas, mantendo através do mecenato compositores, músicos e até orquestras inteiras à disposição dos palácios e residências nobres. Beethoven, com seu talento e diversas cartas de recomendação, foi muito bem recebido, passando a figurar entre os mais conhecidos e requisitados pianistas de sua época. Aos poucos, suas primeiras obras foram sendo divulgadas, e em pouco tempo passou a receber encomendas de composições e chegou até a ter diversos editores brigando pela publicação de suas obras. Passou a sustentar sua família em Bonn, e assim viveu, frequentando os círculos intelectuais, políticos e artísticos mais influentes de Viena.

Desta fase, são suas primeiras obras significativas, as duas primeiras Sinfonias (op.21 e op.36), as Sonatas para piano op.13 "Patética" e op.27 "Ao Luar", e os dois primeiros Concertos para Piano (op.15 e op.19, apesar de que a numeração está invertida em relação à ordem de escrita), que ainda possuem grande influência do classicismo vienense do estilo de Haydn e Mozart.

Alguns biógrafos começam a identificar, nesta fase, por volta de 1798, um afastamento progressivo de Beethoven nestes círculos. Sua fama já era considerável, mas cada vez aparecia com menor freqüência em público, e muitos se perguntavam a razão daquele comportamento estranho, vindo daí sua fama de artista excêntrico e sonhador. Várias vezes foi visto caminhando sozinho e distraído, completamente alheio ao que acontecia ao seu redor.

Em 1801 a razão de seu isolamento vem à tona para o grande público, quando Beethoven escreveu a dois amigos próximos abrindo seu coração para o mal que o afligia: a surdez eminente.

Esta é uma das mais conhecidas páginas da biografia de Beethoven, e não sem razão. O extremo conflito pessoal que viveu nesta época foi decisivo para sua vida e sua obra.

Escreveu a seus amigos nestes termos: "Devo confessar que estou levando uma vida miserável. Por quase dois anos deixei de atender quaisquer compromissos sociais, justamente por achar impossível dizer às pessoas: estou surdo." e ainda: "Seu Beethoven está levando uma vida muito infeliz, e está de mal com a Natureza e seu Criador". Mas, não obstante, sentia que suas forças criativas estavam em plena atividade, e, ao mesmo tempo em que lamentava profundamente a saúde de sua audição, também comentava sobre seu sucesso financeiro, o quanto estava produzindo, o quanto era requisitado para compor, se apresentar e tocar. Este aparente contraste de sentimentos o impeliu a escrever também "Quero pegar o destino pelo pescoço; ele certamente não haverá de me abater completamente! Quão belo seria poder viver a vida mil vezes!"

Durante esse período, teve muitos acessos de depressão, e em 1802 chegou a escrever um testamento – o famoso Testamento de Heiligenstadt – em que põe em palavras toda a sua dor e sofrimento pela progressão da doença, ao mesmo tempo em que revela seu amor pela Arte, pela Vida e pela Natureza. Este testamento foi uma espécie de ponto de estrangulamento em sua vida: a partir deste ponto, um outro Beethoven emergiu. Percebendo que a surdez o deixaria gradativamente impossibilitado de se apresentar em público, agarrou o destino pelo pescoço, pôs de lado a festejada e promissora carreira de intérprete e voltou-se para a composição, deixando fluir o manancial da inspiração que batia à sua porta – tal qual o destino, na alusão à batida da porta de sua V Sinfonia – dando vazão à criação de uma das mais belas obras musicais da humanidade.



Os biógrafos identificam a partir deste momento uma segunda fase de sua vida e obra, e Otto Maria Carpeaux define bem este período: "Nunca um artista produziu tantas obras-primas como Beethoven em sua segunda fase". A virada é impressionante, a diferença na evolução do estilo é nítida. A tradicional forma clássica começa a expandir horizontes, o desenvolvimento da narrativa musical torna-se mais denso, o componente sensível que norteia a obra passa a ser espelho das profundezas da psiquê humana, e não mais de um ideal estético de uma beleza inalcançável; para tanto, o tamanho da orquestra aumenta, a duração das obras também, a expressão dos sentimentos passa a figurar como essência da obra.

A lista é grande: começa com a Terceira Sinfonia, op.55, dita "Heróica", obra inspirada por anseios filosóficos e políticos de Beethoven, alinhados com os ideais de Liberdade, Fraternidade e Igualdade da Revolução Francesa, ideais estes profundamente admirados pelo compositor. Para tanto, havia pensado originalmente em dedicar a obra ao general Napoleão Bonaparte, o grande estadista e porta-voz da Liberdade, mas ao coroar-se Imperador, Beethoven considerou-o ambicioso, traidor dos princípios que outrora nortearam a maior das Revoluções na Europa, e rasgou a dedicatória, substituindo-a por "à memória de um grande homem".

Do mesmo período são a Sonata para piano op.53, chamada "Waldstein", por ter sido dedicada ao nobre homônimo, que é um verdadeiro Hino de fraternidade, e a tempestuosa Sonata op.57, muito propriamente chamada de "Appassionata", bem como os 3 magníficos Quartetos op.59, dedicados ao príncipe Rasumovsky, que fazem alusão a temas folclóricos russos, e o 4º Concerto para Piano, op.58, o mais lírico da série, de uma beleza indescritível.

Segue-se a Quarta Sinfonia, op.60, de alegria exuberante, o Concerto para Violino op.61, único do gênero que Beethoven escreveu, mas considerado o maior de todos; a sombria abertura para a tragédia de Josef Von Collin, Coriolano op.62, e suas mais famosas obras, a titânica Quinta Sinfonia, op.67, e a poética Sexta, op.68, chamada de "Pastoral". Ambas resumem o estilo e os traços mais característicos da obra de Beethoven, e especialmente a Pastoral, segundo ele próprio "expressões e sentimentos da vida no campo", refletem o grande otimismo do compositor em relação à vida e à arte. O mesmo músico que outrora declarava que estava brigado com a Natureza e o Criador, agora havia feito as pazes com a fatalidade, e escrevia em seus cadernos aforismos do tipo: "Quem sou eu perto do Universo?", "Por que escrevo? O que tenho no coração é preciso que saia: Eis porque escrevo." ou ainda "Amar, primeiro, a liberdade; mesmo que seja por um trono, não renegar, nunca, a verdade." Frases e pensamentos como este povoaram seus cadernos de conversações, muitas vezes sem um interlocutor definido, mas que são o testemunho de um homem que teve no sofrimento a chance de voltar-se para dentro de si mesmo, e com a coragem dos heróis, transformar a dor na mais refinada das artes.
Caricatura de 1808 satirizando uma execução da "demoníaca" 5a. Sinfonia

Inclui ainda neste período a belíssima Sonata para Violoncelo op.69, sua única ópera, Fidelio, op.72, o Quarteto de cordas op.74, chamado "A Harpa" por seus contundentes arpejos, o irresistível Concerto para Piano no.5 op.73, conhecido como Concerto "Imperador", sem dúvida o mais nobre e vigoroso concerto já escrito; a grandiosa abertura Egmont op.84, a Sétima Sinfonia, op.92, definida por Wagner como "a apoteose da dança" e exaltada como a maior sinfonia do mestre; e tantas outra obras cujos adjetivos falhariam em traduzir.

Essa imensa obra ainda estava longe de terminar, Beethoven contava 40 anos e estava na plenitude de seu poder criativo, mas sua revolução ultrapassou aspectos estéticos: uma nova forma de produzir música estava no ar. Ao contrário do padrão clássico, em que os compositores eram empregados das cortes e igrejas, e tinham por mecenas príncipes e nobres, foi Beethoven o primeiro compositor a inverter a ordem das coisas, a ter autonomia total na criação artística. Era ele quem ditava as regras aos nobres, ele dizia o que os editores deveriam publicar, ele escolhia o que dedicar, a quem e quando. E, pelo carisma de sua obra, não houve protestos. Beethoven já era considerado, em atividade, o maior compositor vivo. Apresentar uma obra de Beethoven era garantia de sucesso dos empresários e editores de música. Beethoven tirou a música das salas dos palácios nobres e a colocou nos teatros, aclamado como porta-voz de uma nova classe emergente, a burguesia, que saía da tirania aristocrática e ansiava por uma arte que representasse seus anseios filosóficos e estéticos. Eis Beethoven, o grande individualista, abrindo as portas da era do autor na música, o Romantismo.

A forma, ainda clássica. O espírito, romântico. E neste estado, entra Beethoven naquilo que os seus biógrafos identificam como a terceira fase, por volta de 1812, e que se caracteriza por uma mudança ainda mais radical na sua obra. Seu estilo passou a ser cada vez mais intimista, abrindo novas fronteiras nos campos da forma, harmonia e desenvolvimento melódico. Esta mudança é normalmente atribuída a dois fatores: o primeiro seria uma relação conturbada com seu irmão, que entregou-se à bebida, e, incapaz de criar um filho, Beethoven requisitou sua tutela, porém dando-lhe mais desgostos que alegrias. O mestre nunca se casou e provavelmente tenha extravasado anseios paternos em seu sobrinho, que não foram correspondidos, deixando Beethoven muito aborrecido e mais afastado mundo. Outro fator foi a surdez, que nesta fase já era total. Enquanto em sua segunda fase ainda era possível alguma resposta auditiva, neste momento era totalmente incapaz de ouvir qualquer som. O resultado foi um Beethoven quase isolado deste mundo, vivendo dentro de seus próprios pensamentos musicais, muitas vezes vagando pelas ruas sem destino. Chegou a ser detido pela polícia como vagabundo. Em contrapartida, sua obra ganha um fôlego inesperado. A Sonata para Piano op.106, chamada Hammerklavier, é uma verdadeira Sinfonia escrita para piano, de dimensões inusitadas e profundidade emocional desconcertante, é um novo estilo, um outro compositor. Muitas das obras dessa fase são estranhas ao público acostumado com o Beethoven titânico da Quinta e Sétima Sinfonias, mas revelam anseios filosóficos muito mais profundos. Desta fase são duas obras muito importantes, a Missa Solemnis, op.123 e a Nona Sinfonia, op.125, que por si mesma já seria suficiente para manter o nome Beethoven na eternidade das grandes obras de arte da humanidade. Há uma quantidade enorme de estudos, livros, teses e publicações das mais diversas, apenas sobre esta obra, tamanho o fascínio que ela exerce. Não é sem razão: Beethoven há muito queria escrever uma obra que abarcasse ideais estéticos musicais e filosóficos, e o fez nesta singular sinfonia, a primeira na história da música a contar com solistas vocais e um coro, cantando o célebre poema de Schiller, a Ode à Alegria, que exalta as virtudes da humanidade frente à beleza da Criação. O tema que Beethoven escolheu para musicar o poema estava em seu caderno de esboços há muito tempo; esperou cautelosamente uma oportunidade que valesse a pena, tal a consideração que Beethoven tinha por esse tema, que sabia ser a tradução musical destes anseios. O resultado, embora criticado por muitos como desigual, foi o maior sucesso de Beethoven até hoje, e é a sinfonia que mais se executa no mundo em ocasiões solenes e nobres, e com razão tem sido usada para os mais diversos fins que tenham a intenção de compartilhar o amor e a fraternidade entre os povos.

Esboço para o tema da Ode à Alegria da Nona Sinfonia

Beethoven estava completamente surdo quando a escreveu, e foi convidado a reger sua estréia em 1824. Consta que ele, ao término do segundo movimento, foi ovacionado entusiasticamente pela platéia, mas não percebeu. Uma das cantoras pegou em seu braço e o virou para que pudesse ver a platéia, e somente aí agradeceu. A Nona Sinfonia é a obra mais importante, e, merecidamente, a mais admirada de Beethoven.

A partir daí, o mestre voltou-se quase que exclusivamente para a composição de quartetos de cordas. Tinha muitos projetos em mente, mas por conta da completa surdez, seus pensamentos musicais revelavam-se tão abstratos, tão imateriais, que acabava por concebê-los na forma do quarteto, o que deu a este gênero uma aura misteriosa. Os "últimos quartetos" de Beethoven são obras difíceis, que requerem certo desprendimento das formas tradicionais, uma nova forma de ouvir.

Já doente e cansado, aos 57 anos, Beethoven falece em 26 de março de 1827, sendo seu enterro um grande acontecimento em Viena, que reuniu aproximadamente 10.000 pessoas (alguns falam de 20.000), para homenagear o "Napoleão" da Música, aquele que, ao ser afrontado por um nobre que lhe disse ser proprietário de terras, respondeu-lhe "pois eu sou proprietário de um cérebro".

Funeral de Beethoven em Viena

Ao contrário de Mozart ou Bach, escrever música para Beethoven nunca foi fácil. Seus cadernos de esboços estão repletos de correções e alterações, mesmo nas partituras autógrafas, o que atesta um trabalho meticuloso por trás de uma inspiração abundante. Beethoven é, por conta disso, a personificação do aforismo que reza "10% de inspiração e 90% de transpiração" na produção da obra artística, e neste sentido também é um grande exemplo de amor à vida e à arte. Resumidamente, nas palavras de Carpeaux, "A arte de Beethoven é o maior documento humano em música. Se desaparecesse do nosso horizonte espiritual, a humanidade teria deixado de ser humana."

Texto: Filipe Salles

quarta-feira, 23 de dezembro de 2015

Gustav Mahler: a busca pela Harmonia do Universo



"Donde viemos? Aonde é que nos leva o nosso caminho? Por que me é dado sentir que sou livre, enquanto que estou confinado, porém, dentro dos limites da minha personalidade, como numa prisão? Qual é o objetivo da labuta e do sofrimento? Será o sentido da vida revelado pela morte?"


Tais questionamentos arquetípicos, tão caros à humanidade, sempre permearam significativamente a história, mas em certos momentos cíclicos eles ressurgem com força psíquica tal que acabam por aflorar em todas as manifestações da civilização. Caracterizado por dúvidas e antagonismos típicos da incerteza que viva a Europa na virada do século XIX para o XX, Mahler foi um dos porta-vozes deste sentimento comum, que notabilizou, através da música, a esfera mais sensível das perguntas fundamentais do Homem.

Um pouco de sua vida e sua obra - uma incessante e obstinada busca pela Harmonia universal - é contada aqui, através de um breve resumo biográfico

CONTEXTO

A passagem do século XIX para o XX foi marcada por mudanças substanciais na cultura, ciências e artes da Europa. A era das vanguardas artísticas, que tornou as artes plásticas independentes da necessidade de representação fiel da natureza, abriu espaço para o cubismo com Picasso e o surrealismo com Dalí; o simbolismo na literatura tomou lugar da tradição romântica de descrições minuciosas e abriu espaço para metáforas poéticas, subjetivas; James Clerk Maxwell, Max Planck e Albert Einstein revolucionam a física com modelos de comportamento atômico que ultrapassavam a mecânica newtoniana, e o mundo conheceu a relatividade do espaço e do tempo; Sigmund Freud descobre a importância fundamental da psiquê em nossas vidas, o sutil limite entre o consciente e o inconsciente, inaugurando a psicologia como ciência; os irmãos Lumière inventam o cinema e George Eastman faz da fotografia uma arte popular; Gottlieb Daimler e Karl Benz inventam o automóvel. Como se já não fosse pouco, o mundo passou a ser movido pela eletricidade.

Dentro de tão rico cenário, a música também gerou representantes destas profundas transformações de consciência, tendo como um dos arautos o compositor austríaco Gustav Mahler (1860-1911), uma das personalidades mais marcantes e influentes do cenário musical europeu na virada do século.

Magro, baixo e atlético, Mahler foi durante sua vida um homem reservado e misterioso, de poucas palavras, mas de muita ação. Seus contemporâneos quase que não o conheciam como compositor, pois foi na atividade de maestro que adquiriu fama e fortuna; segundo dizem, um dos mais extraordinários regentes que a música já teve. Dono de uma enorme intuição estética e um profundo senso de conjunto, Mahler submetia os músicos da orquestra a longos e exaustivos ensaios, repetindo quantas vezes fossem necessárias as passagens que não satisfaziam seus altos padrões musicais, na intenção de extrair os melhores resultados na interpretação das obras. Seus esforços neste sentido - e que também lhe deram fama de ditador excêntrico e chato entre os músicos - renderam todas as glórias de sua vida.

Nasceu numa pequena aldeia na Bohêmia (hoje Áustria) chamada Kalischt, a 7 de julho de 1860, o segundo filho do casal Bernard Mahler e Marie Hermann. Seu irmão mais velho faleceu ainda criança e Gustav foi tido como primogênito. Cedo seu pai descobriu os dotes musicais de Gustav e incentivou-o assiduamente, trabalhando a duras penas para sustentar seus estudos, pois eram de família muito pobre e Bernard tinha sérios problemas com a bebida. Após a morte deste, Gustav sustentou toda a família de 6 irmãos e a mãe.

Após passar bons anos no conservatório estudando piano e composição, aos 20 anos de idade, Mahler decidiu tornar-se regente, começando num posto de maestro assistente em Hall, cidadezinha no norte da Áustria, em que regia pequenas comédias musicais e ainda varria o fosso da orquestra após cada apresentação. Mesmo com um repertório simples e aquém de sua capacidade, sua habilidade musical fez extrair magníficos resultados, que permitiu a ele pleitear postos melhores. Passou por Leipzig e Dresden, regendo óperas e concertos, sempre com a dedicação ao trabalho como ponto fundamental, o que suscitou a inveja de seus concorrentes.

Era um jovem assíduo, sério e dedicado, de enorme talento e profundamente comprometido com a música que tanto amava, e não foi difícil arrumar algumas brigas com administradores e regentes mais velhos que se sentiram ameaçados. Em 1888 foi indicado para a orquestra da Ópera de Budapest, uma casa tradicional mas que vivia seu pior momento financeiro, estando à beira da falência. Ao contrário do que seus detratores pensaram ao indicá-lo, ou seja, que ele afundaria com o teatro, Mahler em pouco tempo reorganizou a administração da casa, renovou o repertório e montou óperas inteiras de Wagner e Mozart com tamanho zelo, empenho e perfeição que se tornaram enorme sucesso, fazendo a casa dar lucro novamente. Sua fama começou a se espalhar pela Europa e já em 1891 estava em Hamburgo, dirigindo a casa de ópera que antes pertencia ao lendário Hans von Bülow, que não poupou elogios a Mahler quando o ouviu reger pela primeira vez.

Em 1892 passou por Londres a convite do Covent Garden para reger Wagner no Royal Opera House, e sua disciplina férrea incluiu estudos de inglês para conduzir a orquestra com mais segurança e desenvoltura. O sucesso foi imenso, o público gritava 'Mahler' e aplaudia incessantemente até ele aparecer no palco, repetindo a ação ao término de cada ato da ópera.

Mahler continuou sua carreira triunfal até o ponto culminante, o cargo musical mais cobiçado de toda a Europa: Maestro titular da Ópera Imperial de Viena. Mahler conquistou o posto em 1897, permanecendo nele por 10 anos e coroando sua carreira com o definitivo reconhecimento de seu meticuloso empenho em fazer a melhor música que podia. Pouco depois, em 1902, casou-se com Alma Schindler, descrita por vários biógrafos como 'a mulher mais bela de Viena'.


AS SINFONIAS

Mas Mahler não estava satisfeito, apesar do sucesso profissional. Estava rico, bem casado, reconhecido internacionalmente, mas algo ainda o atormentava profundamente. Por que razão um músico tão completo, que havia triunfado na vida, alcançado o cargo mais importante que em sua época se podia almejar, insistia em passar todas as suas férias anuais - seu único tempo disponível - a escrever enormes sinfonias de expressividade ímpar, tão íntimas, mas de uma solidez irresistível? Embora tivesse produzido muitas canções, algumas com acompanhamento ao piano e outras com orquestra, suas dez colossais sinfonias são a coluna dorsal de sua produção artística. Todas elas, apesar das enormes diferenças formais, formam um todo tão uno e coeso, que muito estudiosos se espantam com a capacidade de Mahler, sendo tão atarefado como regente, não deixar nunca outras obras interferirem em sua inspiração, preservando um estilo individual marcante e inconfundível. Obras de grande intensidade dramática, orquestração rica e linhas melódicas abundantes, que são a chave para o entendimento das idéias deste homem místico e solitário. O próprio Mahler disse certa vez ao compositor Jean Sibelius: 'A Sinfonia é o mundo! A Sinfonia deve abranger tudo!' De fato, levando em conta a origem da palavra Sinfonia, que significa "soar em conjunto", podemos entender o quanto era caro a Mahler o sentido de transformar sons diversos em harmonia pura, organização musical das mais exigentes.

Todas as suas sinfonias são narrativas épicas que propõe alguma jornada heróica. Existe, portanto, um "personagem" característico, que em última análise é seu próprio ego, e que permeia simbolicamente as linhas melódicas através de temas específicos. Tais personagens se revestem de diferentes idiossincrasias, mas possuem, como já mencionado, um todo orgânico coeso que permite acompanhar sua trajetória de forma quase cíclica, como capítulos de uma grande epopéia. Este talvez seja um dos grandes atrativos de sua obra: a partir da experiência pessoal narrada, atinge o arquétipo universal. 3 grandes temas permeiam as vicissitudes do herói mahleriano: a redenção divina, o amor e a morte. É possível acompanhar, como numa novela, a trajetória deste herói sonoro por todos estes temas no decorrer da audição de suas sinfonias, e assim refletir sobre o próprio desenvolvimento deles durante a vida produtiva de Mahler.


PRIMEIRA SINFONIA

Assim, sua Primeira Sinfonia, estreada em 1889, nasceu depois de um longo percurso de trabalho e reflexão estética. Conhecida com o subtítulo de Titã, pela inspiração literária de uma novela homônima, foi originalmente concebida como um poema sinfônico, mas sua organização estrutural de grande envergadura se mostrou muito mais eficiente como uma Sinfonia. A Primeira é, curiosamente, um resumo, um intróito, um prefácio que ao mesmo tempo introduz e resume todo o universo sonoro de Mahler. Poucas sinfonias iniciam num clima de tanta expectativa, tanta juventude e energia: É impossível ouvir alheio às fanfarras triunfantes dos trompetes que explodem na alegria do final, advinda de um tempestuoso conflito (o início do último movimento). Nesta sinfonia está patente o potencial melódico de Mahler (as melodias no cello e na trompa, no primeiro movimento; bem como o magnífico Scherzo dançante), sua fina ironia (o terceiro movimento, paródia musical da canção Frère Jacques), e suas preocupações filosóficas e espirituais (A agonia conflitante do último movimento, que culmina numa explosão de alegria e solenidade, designado originalmente pelo subtítulo "do Inferno ao Paraíso"). É a sinfonia que, de forma brilhante e algo inexplicável, profetiza toda a futura jornada do herói mahleriano. Todos os elementos mais marcantes de sua música estão, de certa forma, expostos nesta, refletindo com particular maestria as facetas de sua personalidade: A busca incessante pelo ideal da beleza, pela harmonia, pela renovação da vida e pela salvação do mundo.


SEGUNDA SINFONIA


Esta sinfonia, estreada em 1895, foi seu primeiro grande sucesso - ainda que reservado a círculos restritos de músicos - e uma de suas obras mais significativas. Com duração de aproximadamente 90 minutos, a sinfonia abre com um longo movimento em forma de marcha fúnebre que alterna momentos de grande tensão dramática com outros de extrema doçura e simplicidade. Seguem-se outros dois movimentos mais calmos, mas muito reflexivos, e então um dos mais belos momentos de Mahler, o 4º movimento, para orquestra acompanhada de uma voz contralto solista. O título deste movimento é Urlicht, (Luz Primordial), das mais sensíveis e belas páginas de Mahler, umas das primeiras diretamente inspiradas pelo ciclo de canções de juventude Das Knaben Wunderhorn ("A trompa mágica do menino") cujo contato travado por volta de 1886 o influenciará por longos anos. Este movimento prepara o ouvinte para o 5º e último, o mais longo de uma sinfonia até então, onde todos os temas se entrelaçam segundo uma narrativa apoteótica que passa do Juízo Final à Ressurreição concluindo com um enorme coral, orquestra duplicada com órgão, sinos e solistas vocais, entoando versos do poeta alemão Klopstock sobre a Ressurreição de Cristo. Mahler ainda acrescentou versos de própria autoria ao texto original, muito significativos para ele e para o contexto da obra: "Oh, acredita, meu coração / não nasceste em vão, não sofreste em vão". Sobre este final, escreveu "A tensão crescente, trabalhando até o clímax final, é tão grande que eu não sei, agora que ele está terminado, como eu pude chegar a escrevê-lo." O primeiro movimento lança uma pergunta: 'com que finalidade viveu você?' O último movimento, com os textos sobre a Ressurreição, responde.  Mahler nunca se esquivou destas perguntas profundas sobre a existência, dizendo certa vez a um discípulo: "Donde viemos? Aonde é que nos leva o nosso caminho? Por que me é dado sentir que sou livre, enquanto que estou confinado, porém, dentro dos limites da minha personalidade, como numa prisão? Qual é o objetivo da labuta e do sofrimento? Será o sentido da vida revelado pela morte?" Esta busca - e a certeza - de um mundo melhor, sempre esteve presente em Mahler, ainda que permeado por dúvidas e antagonismos típicos da era da incerteza que viva a Europa na virada do século. Por essa razão, a linha narrativa sinfônica mais comum em Mahler é a de estruturar suas sinfonias com uma primeira parte dramática, por vezes trágica, uma parte central mais reflexiva, e um final triunfante e otimista, simbolizando um estado de plenitude ao encontrar ou reencontrar um norte espiritual. É uma narrativa visível nas Primeira, Segunda, Quinta e Sétima sinfonias.

Mahler era judeu de nascimento, mas nunca foi praticante. Converteu-se ao catolicismo em 1897, e a maioria dos biógrafos interpretam tal fato como oportunista, pois para assumir o posto na Ópera de Viena, havia uma condição que obrigava o candidato a ser católico. Mahler, com certo desdém ao ritual, disse nesta ocasião: "apenas troquei de casaco". Mas, levando-se em conta a sinceridade das emoções dispostas na Segunda Sinfonia, é de se perguntar se ele também não teria sido levado, para além do sentido religioso institucional, por convicções muito pessoais. Ele estudava a religião do ponto de vista mais filosófico que dogmático, e talvez por isso a religião em si não o interessava, e sim sua mensagem intrínseca, o que parece, no decorrer de sua obra, fazer maior sentido.

TERCEIRA SINFONIA

Na Terceira, Mahler foi buscar inspiração na mitologia e na natureza. Queria chamá-la de Sinfonia Pã, deus dos pastores e rebanhos, por ser de inspiração bucólica. Considerava esta a sua Pastoral (em alusão à Sexta Sinfonia de Beethoven), e descreve em seus seis longos movimentos (a mais extensa de todas as suas obras, dura aproximadamente 100 minutos) impressões sobre a chegada da primavera, os animais e as plantas, bem como a escalada do homem em busca da redenção, até alcançar o sublime e perfeito, descrito no último movimento, cujo subtítulo é "o que me diz o Amor". A orquestração é rica em timbres e efeitos de massa, mas com sutilezas mais elaboradas e requintes bastante inusitados, como o uso de 4 piccolos simultâneos no primeiro movimento, ou o flügelhorn nos bastidores do 3o. movimento. Nos movimentos intermediários, utiliza novamente as vozes num coral infantil, coral feminino e contralto solista, cantando trechos de Nietzsche (All joys want eternity / want deep, deep eternity) e mantém um laço mais estreito com o ciclo folclórico de canções Das knaben Wunderhorn. Novamente, o texto é bastante significativo: "Love God alone all your life / and shall attain heavenly joy / Heavenly joy is a happy city / Heavenly joy knows no end / Heavenly joy was granted by Jesus / To Peter and us for our eternal felicity". Mahler referiu-se a ela diversas vezes com espanto, admirando sua beleza como se não fosse de sua autoria.
Pela complexidade melódica, riqueza de temas e inspiração mitológica, esta é uma sinfonia que fecha um grande ciclo de impressões, pensamentos e sentimentos puramente filosóficos em Mahler. Pensamentos profundos sobre a existência humana, o sofrimento e a salvação. É uma grande digressão sinfônica, que, se por um lado oferece belezas musicais insondáveis, por outro se esforça para manter uma unidade coesa de movimentos tão longos e distintos.


QUARTA SINFONIA

Muitos biógrafos e musicólogos ainda incluem nesta fase a sua Quarta Sinfonia, por ela ainda manter inspiração nos textos do Knaben Wunderhorn, e por seu último movimento ter sido pensado originalmente para o final da Terceira. Mas são universos já bastante distintos, apesar das semelhanças físicas, pois, ao contrário das anteriores, sua Quarta Sinfonia é uma das mais simples e objetivas. Talvez já tendo esgotado os recursos grandiloqüentes da Segunda e Terceira, Mahler procurou nesta a extrema simplicidade, pureza de timbres e de temas, síntese de idéias e evitando os efeitos de massa instrumental das sinfonias precedentes. Não utiliza nem trombones nem tuba na orquestração, refinando sua técnica de escrita e obtendo efeitos quase camerísticos, e por isso considerada por muitos como uma de suas melhores sinfonias. Mais uma vez, aproveitou a voz humana no último movimento, com um texto do Wunderhorn sobre as impressões de uma criança no Paraíso. Um final extremamente simples, mas também muito significativo na obra de Mahler, que prima pelo discurso claro, de transparência cristalina, mas cuja riqueza de idéias e de temas nada fica a dever às Sinfonias anteriores.



QUINTA SINFONIA


As três sinfonias que se sucederam são puramente instrumentais, e Mahler inaugura com elas um novo ciclo, mais "musical", sem interferências de textos e narrativas extra-musicais. Mas, apesar disso, são sinfonias que não abandonam as intenções filosóficas, mas, ao contrário, as deixam mais subjetivas, abstratas, com um certo requinte em combinar música sutilmente programática com música absoluta.
Sua Quinta Sinfonia é a mais conhecida e também a mais importante, obra divisora de águas, em que Mahler busca uma fusão de suas convicções pessoais com sua poderosa intuição estética, na tentativa de transformar suas idéias em música pura. Dividida em três partes, ela organiza de uma maneira bastante convicta o que antes aparecia de maneira implícita, ou seja, a narrativa musical saindo do trágico e caminhando para o triunfo. A primeira parte abre com uma marcha fúnebre, seguida de um movimento tempestuoso e enérgico (não sem a indicação da esperança, num tema que depois será retomado com alegria abundante no final), caracterizando o conflito e definindo suas metas. A segunda parte engloba um único movimento, o Scherzo, mais descontraído e musicalmente muito bem arquitetado, como se fortalecendo as bases para a terceira e última parte. Esta inicia com o famoso adagietto, talvez a mais conhecida passagem de Mahler, um movimento escrito apenas para cordas, lento e de beleza incomparável em sua obra. Um grande hino de amor e esperança. O final mescla temas dos movimentos anteriores, mas sempre direcionando-os para a resolução dos conflitos, com passagens simples, quase infantis, concluindo com uma grande explosão de alegria. A Quinta é, para muitos, sua mais característica obra, onde suas idéias musicais e convicções pessoais estão dispostas de maneira mais equilibrada e segura (apesar do próprio Mahler ter revisto várias vezes a partitura e se espantava em verificar erros de orquestração cada vez que fazia uma nova revisão).


SEXTA SINFONIA

A antítese da Quinta é a Sexta, sinfonia que começa nos mesmos moldes, mas que não termina na resolução dos conflitos propostos, conservando as tensões harmônicas até o final, sendo por isso, conhecida como Sinfonia Trágica. Mahler a escreveu em 1905, quando descobriu que era portador de uma doença genética no coração, e que iria matá-lo em breve. Poucas obras musicais revelam com tamanha perfeição o conflito pessoal que o sufocava, tomando consciência de maneira bastante dura e irrevogável de sua condição humana, e, portanto, mortal. É uma sinfonia pesada, de orquestração maciça, harmonias fortes, mas também não sem encantos, sendo seu Andante uma das páginas mais apaixonadas de Mahler. Sua estrutura, em compensação, é extremamente clássica, de um equilíbrio admirável, não obstante sua extensão de 80 minutos. De qualquer modo, não é uma sinfonia facilmente digerível; o clima angustiante de um herói às voltas com seu próprio limite permeia toda a sinfonia, incessantemente. Utilizou, pela primeira vez, um recurso percussivo quase bélico, um enorme instrumento chamado martelo, que punge com força descomunal o clímax dramático do último movimento. Aliás, é uma das sinfonias mais ricas em termos de uso da percussão, com passagens épicas nos pratos e no tan-tan. Uma caricatura da época chega a ironizar grosseiramente as exigências do contingente percussivo, dizendo "puxa, esqueci as buzinas, agora terei que compor outra sinfonia!". Ao terminá-la, apesar de estar passando por um período relativamente tranqüilo de vida, viu expurgados anseios íntimos, antigas preocupações lhe afloraram.




SÉTIMA SINFONIA

Voltou-se para a reflexão íntima, e começou a escrever a Sétima, conhecida, muito propriamente, como 'Canto da Noite', por sua atmosfera mais calma e taciturna, com toques de melancolia. Foi um período bastante difícil para Mahler, a recente morte de sua filha mais velha, angústias profissionais na difícil tarefa de administrar a Ópera de Viena, e uma certa queda de inspiração, que certamente o fez repensar muitas de suas posições. Tornou-se áspero e intransigente, experimentando o dissabor de muitas inimizades. A Sétima é um grande espelho destas transformações: Mahler retoma aqui a linha narrativa da Quinta, terminando com um final alegre e esperançoso, mas sem a mesma convicção que outrora havia resultado na sólida arquitetura musical característica de seu estilo, transparecendo de várias maneiras uma condição de estabilidade formal inferior às sinfonias anteriores. É uma sinfonia instável do ponto de vista da arquitetura e da harmonia; mas por outro lado é também inovadora nestes dois sentidos, criando um universo complexo de movimentos que possuem relações harmônicas distantes (cada movimento é escrito em uma tonalidade diferente), ao mesmo tempo esteticamente ousado e filosoficamente simbólico.

OITAVA SINFONIA

Talvez Mahler tivesse revisto a Sétima, como costumava fazer com as sinfonias precedentes, se não tivesse mudado radicalmente o foco de sua inspiração, deixando-a de lado: durante sua composição, Mahler travou contato com um poema medieval do monge Hrabanus Maurus, chamado Veni Creator Spiritus (Vem, Espírito Criador!) e ele imediatamente foi tomado por uma súbita inspiração, ouvindo o texto todo em música. Pediu a tradução imediata do texto do latim para o alemão e iniciou aquela que seria a sua Oitava Sinfonia, que ele próprio considerava sua melhor obra. A inspiração tomou-lhe o espírito com tamanha intensidade que completou a Sétima rapidamente, sem o habitual esmero de revisar as idéias e a partitura.
A Oitava, por sua vez, é uma retomada de suas energias criadoras e um ponto-chave de um a nova fase, tanto estética como espiritual. A volta do uso expressivo da voz na sinfonia, mas de maneira muito particular e original, sendo inteiramente cantada por oito solistas, coro duplo e coro infantil, além de orquestra duplicada e órgão, dando à sinfonia o subtítulo de Sinfonia dos Mil, pois em sua estréia - a última que o próprio Mahler regeu - o contingente instrumental e vocal contabilizava 1023 pessoas.
Mahler mesmo descreve a composição desta magnífica obra: "O Spiritus Creator se apossou de mim e me sacudiu, e me impeliu para adiante, e como de um só golpe, tudo estava diante de mim; não só o primeiro tema, mas todo o primeiro movimento". O compositor, que parecia ter esgotado as possibilidades combinatórias racionais, curvou-se ao coração, escrevendo a sinfonia inteira, de 80 minutos, em 3 meses, e ainda confidenciando a Schoenberg que "era como se toda ela me tivesse sido ditada", uma sensação de "ser composto", e não de compor. Ao terminá-la em 1906, escreveu ao maestro Mengelberg: "Aqui me encontro mergulhado nas notas! Apenas terminei minha Oitava. É a maior coisa que escrevi. É de tal modo especial no conteúdo e na forma que me é impossível falar nela. Procure imaginar que o Universo inteiro comece a vibrar e ressoar. Não se trata de vozes humanas, mas planetas e sóis que giram". E também, muito a propósito, "todas as minhas sinfonias anteriores foram apenas esboços para esta". Unindo seus estados de consciência, reflexão íntima na busca pela redenção, sublimação dos conflitos e ideal estético, sem dúvida a Oitava era a coroação definitiva, a confluência de todo o seu universo material e espiritual, finalmente unificado, materializado.
De fato, é uma sinfonia que transpira luminosidade, esperança, otimismo da primeira à última nota. Para completar a primeira parte, o hino Creator Spiritus, Mahler escolheu musicar o final do Segundo Fausto de Goethe, que descreve a redenção humana através do Amor Cristão, dissipando os vícios humanos na escolha de Fausto pela virtude divina e não pelas venturas terrestres. Mahler sem dúvida encontrou aí as respostas para seus conflitos espirituais, e a fluência da inspiração confirmou ainda mais o caminho escolhido, terminando a sinfonia num clima absolutamente nobre e solene (o Chorus Mysticus), com grupos de metais espalhados por todo o teatro entoando o tema principal, num triunfo de glória que confere à esta Sinfonia um caráter eminentemente ritual.






A partir da composição da Oitava sua vida mudou radicalmente, ele próprio escreveu várias vezes sobre a dificuldade de mudar hábitos arraigados mas que tinha uma íntima necessidade de fazê-lo. Conformando-se com a doença no coração que o mataria dali a pouco, passou a visitar mais amigos, a escrever cartas de amor à sua esposa (cuja relação havia se esfriado substancialmente com a morte de sua filha), e mostrou-se extremamente generoso, até para com seus detratores. Chegou a doar uma grande quantia em dinheiro para Schoenberg, que passava por sérias dificuldades financeiras, e abrir mão dos honorários de publicação de suas quatro primeiras sinfonias para que a editora pudesse lançar obras de compositores menos conhecidos. Isolou-se por longas temporadas em sua casa de campo, no interior da Áustria, deixou o cargo na Ópera de Viena e fez viagens regulares a Nova York para reger a Filarmônica e o Metropolitan Opera House.

Em busca de explicações mais profundas para seus problemas e transformações pessoais, foi ter com Freud em Viena e fez algumas consultas com ele; travou contato com medos e impressões da infância que até aquele momento o atormentavam, e que sem dúvida lhe deram subsídios para entender muito daquilo que tinha escrito; além de ter reconhecido sua atitude autoritária para com sua esposa. Como um viandante solitário, Mahler sabia o valor de sua música, mas sentia-se um artista alheio, que não se identificava com nenhuma tradição própria, nem histórica e nem musicalmente. Um de seus mais famosos aforismos é, muito a propósito, "Sou 3 vezes apátrida: tcheco para os austríacos, austríaco para os tchecos, e judeu para o mundo". Antes de exprimir uma indignação xenofóbica, era uma constatação de que sua arte precisaria de maturação, como se entendesse que sua arte não pertencia àquele mundo (dizia: "meu tempo há de chegar!").


DAS LIED VON DER ERDE

Recolhido pela doença e pela confinação espiritual, Mahler ganhou de um amigo um livro de poemas chineses traduzidos para o alemão chamado A Flauta Chinesa. Ele ficou impressionado com a subjetividade oriental, seu otimismo e filosofia, que permeavam os poemas e pensou em escrever uma nova sinfonia. Como era supersticioso, sabendo que Beethoven, Schubert, Bruckner e Dvórak tinham escrito 9 sinfonias, Mahler ficou apreensivo em escrever sua Nona, temendo sua morte antes de poder completá-la. Por este motivo, voltou ao gênero da canção orquestral, e produziu uma obra-prima chamada Das Lied von der Erde (A Canção da Terra). Nesta obra, muito mais íntima e pessoal que qualquer outra, Mahler escolhe os poemas para musicar cuidadosamente, segundo suas necessidades mais profundas, a maioria falando sobre as alegrias da vida, como por exemplo Da Beleza, Da juventude e O Ébrio da Primavera.


Mas também estão presentes poemas mais reflexivos, O Solitário de Outono, que talvez seja muito próximo do que Mahler sentia na ocasião, mas não há dúvida que o movimento mais significativo é o último, de quase meia-hora, Abschied (O Adeus). Muito propriamente, é um poema mais introspectivo, que exalta as qualidades da natureza em renovar-se continuamente, quando a morte dá lugar a nova vida. Mahler sentiu-se confortado com este poema, uma vez que ele próprio estava cara-a-cara com a renovação da vida, e fez da música que o acompanha uma das mais sensíveis e comoventes que já escreveu. Termina com repetidas e pausadas vezes a entonação da palavra Ewig (para sempre).

Recuperando suas energias, sentiu-se muito tranqüilo e por várias ocasiões escreveu a amigos exaltando sua condição de vida, de maneira serena e bastante sólida. Gostava de caminhar pelos bosques e beber moderadamente, escrever música olhando a natureza pela janela, e, não obstante sua relação desgastada com a esposa, sentia-se feliz. Sua acolhida em Nova York foi mais fria que a esperada, manteve-se a habitual incompreensão de seu estilo e sua obra. Ele entretanto, parecia estar satisfeito intimamente, e sentiu novamente a alegria de escrever, não dando muita atenção às vicissitudes da rotina na orquestra.


NONA SINFONIA

Sua Nona Sinfonia é, nestas condições, uma obra extremamente compensadora: A liberdade exterior e interior que Mahler experimentou nesta fase permitiu a ele olhar a música de maneira totalmente nova e explorar novos horizontes. Uma narrativa de subjetividade ímpar, absolutamente poética, permeada por combinações sutis e geniais de timbres diversos, ritmo dissolvido (no primeiro e no último movimento), harmonias etéreas, e ainda retomando temas de todas as suas sinfonias precedentes, de maneira implícita, mas como que fazendo um grande balanço de sua obra. Seu último movimento é uma reafirmação do final da Canção da Terra, mas só instrumental. O maestro Bruno Walter via, neste movimento, o último finale que Mahler completou, "uma atmosfera de transfiguração, apoiada pela singular transição entre o lamento da despedida e a visão radiante do Paraíso".


Mahler colheu, já no último ano de vida, sua maior glória, o reconhecimento como compositor, na estréia, em 1910, da sua Oitava Sinfonia. Começou a esboçar a Décima, mas só completou o primeiro movimento, falecendo serenamente em sua cama, de uma infecção cardíaca em 18 de maio de 1911.
Pelos enormes recursos orquestrais e vocais que suas obras exigem, Mahler ficou relegado durante muito tempo após sua morte a um restrito círculo de admiradores, pois a execução de suas obras demandavam intenso trabalho dos músicos e dos regentes. Como se não bastasse, por sua ascendência judia, foi banido da Alemanha durante a Segunda Guerra. Mas graças aos esforços de muitos maestros como Leonard Bernstein, Bruno Walter e Bernard Haitink - e sem dúvida pela invenção do Long-Play (o disco de vinil) - após a década de 60 ele encontrou seu lugar de merecido reconhecimento pela grandeza e profundidade da obra, tanto do ponto de vista artístico como filosófico, por imprimir em sua música a busca incessante pelo ideal pleno da Harmonia que rege o universo.

publicado originalmente em
http://www.mnemocine.com.br/filipe/mahler.htm

Mais sobre Gustav Mahler:

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BIBLIOGRAFIA em PORTUGUÊS:

KENNEDY, Michael, Mahler Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editores: 1988
BARFORD, Philip, Mahler - Sinfonias e Canções Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editores: 1983
MAHLER, Alma Maria, Minha Vida